Quando não havia corrupção no Brasil (?)
É
comum hoje em dia ouvir dizer que durante a ditadura não havia
corrupção. Ô, se havia! O que não havia era imprensa livre e Justiça que
funcionasse
Por Mouzar Benedito. Foto por http://www.flickr.com/photos/pong/.
No início dos anos 1980, quando o PT foi fundado,
os comunistas não gostaram dessa novidade. Diziam que o verdadeiro
partido dos trabalhadores já existia, era o PCB. Tinha também o PC do B.
Além da disputa pela legitimidade na representação
política dos trabalhadores, havia algo mais que irritava os comunistas:
diziam que para os petistas as lutas de esquerda começaram com o
movimento operário de São Bernardo do Campo (SP), no final da década de
1970.
Muitos petistas, principalmente os de origem sindical, realmente desconheciam a história da esquerda no Brasil.
Mas de um tempo para cá, os críticos desse
desconhecimento da história têm embarcado num outro desconhecimento
histórico, com aliados da velha direita, falam como se a corrupção no
Brasil tivesse começado em 2003, quando Lula tomou posse.
A corrupção em governos petistas realmente incomoda mais
do que a praticada por não petistas. A partir da campanha eleitoral de
1994, o PT foi abandonando seus princípios socialistas e adotando a
bandeira da anticorrupção, ao mesmo tempo que passou a aceitar dinheiro
de empreiteiras e bancos nas suas campanhas. Na época, antes de me
desfiliar do partido, eu disse que se algum dia o PT chegasse ao poder
iria ter corrupção, sim, pois nenhum partido é formado só de santos.
Teve gente que passou a me odiar por isso.
O certo é que, tendo como grande bandeira a moralidade,
qualquer ato de corrupção parece mais odioso para os outros. Além disso,
a mídia é mais fiscalizadora quando o governo é teoricamente de
esquerda, e até a Justiça funciona mais efetivamente.
Assim, é comum hoje em dia ouvir dizer que durante a
ditadura não havia corrupção. Ô, se havia! O que não havia era imprensa
livre e Justiça que funcionasse.
Muitos livros interessantes sobre a ditadura têm sido
lançados nos últimos anos, mas se escreveram algum sobre a corrupção que
havia durante a ditadura, não vi. Faz falta. Acredito que era maior,
bem maior, do que a que veio depois dela, pois não havia muita
divulgação e nenhuma punição. Tanto que alguns militares que imaginavam
que realmente a ditadura que iniciou em 1964 combateria a corrupção,
quando tomaram consciência dos descalabros que havia, diziam perplexos:
“Foi para isso que fizemos a revolução?”.
Começou antes de 1500
Espanha e Portugal têm uma tradição antiga de
corrupção. Eram conhecidos na Europa, antes mesmo das grandes
navegações, por ter uma burocracia cheia de meandros que podia ser
evitada dando propinas a autoridades. Era aquilo que aparece num velho
ditado: “Criar dificuldades para vender facilidades”.
Essa é uma herança que podemos, sim, chamar de maldita,
mas muito pouco estudada ou lembrada. A falta de uma imprensa livre,
muito conveniente para os corruptos, além de facilitar a rapina é um
problema para o estudo da corrupção no Brasil. Não há muitos registros.
Até o início do século XIX não tivemos nenhum jornal no país. Durante o
Estado Novo, de Getúlio, entre 1937 e 45, a imprensa era totalmente
censurada, e de 1964 a 1985 ela foi bastante perseguida, isto é, pelo
menos a imprensa que tentava cumprir seu papel.
Aos que acreditam, ou fingem acreditar, que a corrupção
no Brasil é coisa recente, vamos lembrar primeiro alguns episódios
antigos.
Para começar, a construção de Salvador, determinada pelo rei de Portugal e efetivada por Tomé de Souza, foi muito superfaturada.
Com a vinda de Dom João VI e sua corte para cá, fugindo
das tropas de Napoleão (ficou aqui de 1808 a 1821), a corrupção se
alastrou consideravelmente. Um exemplo é o Banco do Brasil, fundado e
refundado várias vezes. A primeira delas foi em 1808, por Dom João VI.
Ao voltar para Portugal, em 1821, Dom João VI pegou todo o dinheiro
depositado no banco. Levou tudo!
Em 1831, depois da abdicação de Dom Pedro I em favor
Pedro II, o ex-imperador seguiu para a Europa no navio Warspite. Com
ele, o fiel Marquês de Paranaguá, antigo ministro da Guerra. Paranaguá
estava apreensivo, pois teria que viver com uma pequena aposentadoria
que tinha em Portugal, não fez fortuna no governo. No navio, ele
recorreu a Dom Pedro em busca de uma solução para seu problema e ouviu o
seguinte do ex-imperador: “Faça o que quiser, não é da minha conta. Por
que não roubou, como Barbacena?”. Barbacena, no caso, era o ex-ministro
da Fazenda, Visconde de Barbacena.
E não são só os governantes e seus chegados que roubam.
Durante a Guerra do Paraguai, foram contratadas tropas de caudilhos
gaúchos para defender as fronteiras brasileiras, mas, segundo Júlio
Chiavenato, no seu livro Voluntários da Pátria, alguns desses
caudilhos não tinham tropa nenhuma, simplesmente embolsaram o dinheiro e
não opuseram nenhuma resistência ao inimigo.
Nelson Werneck Sodré, em seu livro História Militar do Brasil
relata caso semelhante na Guerra Cisplatina (1825-1829), que terminou
com a independência do Uruguai, até então pertencente ao Brasil, com o
nome de Província Cisplatina. E mais: Sodré dizia que durante o Império
fornecedores do Exército enriqueciam rapidamente, passando recibo (e
recebendo o dinheiro devido por isso) de mercadorias que nunca
entregaram ou entregaram em quantidade ou qualidade diferente do
especificado. Ele conclui: “Chega a ter a impressão de que de cada dez
indivíduos nove eram desonestos ou desidiosos na defesa da moralidade
administrativa das Forças Armadas. (…) Os que discordavam eram poucos e
considerados criadores de caso”.
E a Igreja? Basta lembrar dos santos do pau oco, usados
para levar pedras preciosas e ouro contrabandeados para a Europa, dentro
de imagens.
Voltando aos tempos recentes
Sem pretender justificar a corrupção em qualquer
governo, seja petista, tucano ou o que for, gostaria de ver esclarecidas
algumas questões que ficaram na minha memória. Não se trata do que
aconteceu pós-ditadura, não me proponho a comparar a corrupção petista
com a tucana.
Mas antes de entrar no assunto ditadura, lembro, para
refrescar a memória dos que falam de um tempo sem corrupção na era FHC,
da compra de votos para ele aprovar a emenda da reeleição. E as
privatizações escandalosas (a Vale, avaliada inicialmente em US$ 120
bilhões, foi “vendida” por US$ 3,2 bilhões, com carência de cinco anos
para começar a pagar e ainda recebendo um empréstimo de US$ 1 bilhão)?
Em 2001, uma CPI deveria apurar a corrupção, com 16 pontos a serem
investigados, entre os quais o tráfico de influência, contribuições
eleitorais irregulares, fraudes na concessão de incentivos fiscais e
caixa 2 nas campanhas eleitorais, mas o presidente Fernando Henrique
Cardoso conseguiu convencer vinte parlamentares a retirarem suas
assinaturas do pedido de CPI e ela não foi instalada.
Isso sem falar no que vem acontecendo no governo do
estado de São Paulo, nicho tucano. Por falar em estado de São Paulo,
aqui governou Orestes Quércia, do PMDB. Uma parte desse partido,
dizendo-se horrorizada com o governo Quércia, propôs a criação de um
partido de mãos limpas, e assim surgiu o PSDB. Anos depois, Quércia, que
chegou a ser comparado a Paulo Maluf, passou a ser cortejado tanto pelo
PSDB quanto pelo PT, assim como o próprio Maluf.
Aliás, quanto ao PT, acho um escândalo as privatizações que vem promovendo, rotulando-as como “concessões”. Tucanou!
Memórias da “pureza” da ditadura
Não tenho boas fontes, tenho memória razoável e
fiz uma pequena “pesquisa” sobre fatos que gostaria os que falam que
durante a ditadura não havia corrupção estudassem e nos revelassem a
verdade.
1. O custo das rodovias construídas no período não eram
divulgados, mas algumas vezes vi notícias que vazavam dos Tribunais de
Contas e, segundo elas, o custo era sempre multiplicado por dez. Uma
rodovia de um milhão, por exemplo, custava dez milhões aos cofres
públicos. A ponte Rio-Niterói, inaugurada em março de 1974, teve um
superfaturamento “um pouquinho” maior: custou onze vezes o custo real.
Nenhum jornal fez matéria sobre isso. Só o Pasquim ousou dar uma
cutucada. Publicou uma foto da ponte, com uma legenda mais ou menos
assim: “Ilusão de ótica: onde vocês veem uma ponte, são onze pontes”.
2. Na pequena cidade de Floresta, Pernambuco, a agência
do Banco do Brasil fazia empréstimos a pessoas influentes do estado,
supostamente para plantar mandioca. Mas elas nunca pagavam: alegavam que
a seca destruíra os plantios que nunca foram feitos e os prejuízos eram
cobertos pelo seguro agrícola. Em 1981, quando se descobriu a mutreta,
calculava-se que o valor total dos “empréstimos” chegara a 700 milhões
de dólares. O processo de desvio de dinheiro não foi concluído e, claro,
nenhum dinheiro foi devolvido.
3. Em Pernambuco mesmo, no ano seguinte, grandes
pecuaristas pediam financiamento para comprar farelo para alimentar o
gado e aplicavam o dinheiro na caderneta de poupança. Essa história
ficou conhecida como “fraude do farelo”.
4. Entre 1977 e 1980, o governo abriu uma linha de
crédito para financiamento de exportações brasileiras para a Polônia, e o
governo polonês ofereceu como garantia títulos podres, que ficaram
conhecidos como “polonetas”. Alguns bilhões de dólares (que na época
valiam muito mais do que hoje) foram para o ralo.
5. Escândalo da Capemi. A Caixa de Pecúlios, Pensões e
Montepio, fundada e dirigida por militares, tinha um plano privado de
aposentadorias que arrecadou muito dinheiro de civis também. Alegando
que precisava diversificar suas ações, a Capemi foi contratada em 1980
para desmatar uma área em que seria instalada a usina de Tucuruí. Não
desmatou e o dinheiro sumiu. Quem aplicou nessa aposentadoria privada,
dançou. E não era pouca gente: tinha dois milhões de associados aos
planos de previdência privada.
6. Em 1981, havia muitas denúncias de corrupção e
chegou a ser criada uma CPI para apurar denúncias como o chamado
“escândalo Lutfalla”, de tráfico de influência de Paulo Maluf para a
concessão de altos empréstimos do BNDE (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico, atual BNDES) a empresas da família Lutfalla, à
qual pertence Sylvia Maluf, esposa do ex-governador, em estado
pré-falimentar. Entre as denúncias a serem apuradas, havia também muitos
empréstimos suspeitos da Caixa Econômica Federal e corrupção nos
Correios. Mas o partido governista, o PDS (Partido Democrático Social),
tinha maioria e conseguiu abortar a CPI.
7. Escândalo Delfin. O Grupo Delfin, de Ronald
Levinshohn, era a maior empresa privada de crédito imobiliário quando,
em 1982, uma reportagem do jornalista José Carlos de Assis mostrou que
ele tinha uma dívida de 60 bilhões de cruzeiros com o BNH… e pagou dando
dois terrenos avaliados em 9,2 bilhões.
8. Em 1978, o governo publicou uma foto da frota de
navios comprados, se me lembro bem, para a Fronape – Frota Nacional de
Petroleiros. Eram uns trinta navios. Mas um jornalista, usando uma lupa,
viu que todos os navios tinham o mesmo nome. Ou seja, era um navio só.
Era uma imagem montada. Quanto dinheiro terá sido embolsado nessa
história?
9. Mordomias, denunciadas pelo jornal O Estado de S. Paulo
em 1976, durante o governo Geisel: os altos salários e as vantagens
indevidas chamadas “mordomias” dadas a altos funcionários do governo.
Até hoje a palavra mordomia tem sentido pejorativo.
10. Tem uma história estranha que não entendi direito,
de dois cheques do Banco Econômico, no valor de US$ 53 milhões, em 1976,
que não foram honrados e o ministro Ângelo Calmon de Sá, do governo
Geisel, com voz no Conselho Monetário Nacional, mandou a conta para o
Tesouro, que pagou tudo.
11. No final de 1977 ou início de 1978, faltavam alguns
meses para vencer o contrato de concessão da Light – do Rio de Janeiro –
para um grupo canadense. A empresa, então, seria entregue de graça para
o Brasil, dali uns meses. Mas o governo não esperou: comprou a dita
cuja pelo valor de mercado, então, quem recebeu uma baita grana de graça
foi o grupo canadense. Claro que muita comissão rolou por baixo dos
panos.
12. Em 1974, a inflação foi de cerca de 35%, mas o
ministro Delfim Netto decretou que tinha sido de 14%, e todos os
salários, por exemplo, foram reajustados por esse índice, baixando
violentamente a renda dos trabalhadores.
13. Segundo a revista Times, numa edição de
1981, empresas europeias deram 140 milhões de dólares em propinas e
suborno para autoridades brasileiras, para pegarem uma fatia da
construção da usina de Itaipu. Rolou tanta grana na construção que muita
gente defendia que o Brasil não pagasse a dívida contraída para ela,
dizendo que os que emprestaram sabiam que o dinheiro era desviado.
14. Uma coisa que considero escandalosa era a sujeição
ao FMI – Fundo Monetário Internacional. Metodicamente vinha aqui uma
mulher desse vampiro internacional dar ordens. Chamava-se Ana Maria Jul.
Mandava demitir gente, cortar dinheiro de áreas sociais, mandava e
desmandava. Era uma coisa tão horrorosa que escandalizava gente de quase
tudo quanto era tendência política. Tanto que até Tancredo Neves,
quando se candidatou a presidente, falou sobre o FMI: “Não vou pagar a
dívida com a fome do povo brasileiro”.
Enfim, é muita coisa para ficar lembrando, puxando pela
memória, tentando pesquisar. Quem quiser que continue a pesquisa.
Sugiro alguns assuntos:
-
Empréstimo de 30 bilhões de cruzeiros ao Grupo Coroa, para compra uma empresa falida.
-
A construção da primeira usina atômica de Angra dos Reis. Quanto custou?
-
A construção de dezenas de estádios de futebol, todos com apelidos terminados em “ão”: Castelão (em Fortaleza), Vivaldão (em Manaus) e muitos outros. Quanto custaram aos cofres públicos?
-
A construção dos aeroportos do Galeão e de Cumbica.
-
As dívidas dos usineiros do Nordeste, que nunca foram pagas (continuam não sendo, ao que parece).
-
O dinheiro – muito dinheiro! – para socorrer vítimas das secas, no Nordeste, ia sempre parar nas mãos de “coronéis”, enquanto o povo morria à míngua. Aliás, nessa história lembro dos poços artesianos construídos depois da ditadura, para abastecer cidades do Nordeste. Em Serra Talhada, Pernambuco, devia ter um deles. Mas quando foram ver, o tal poço tinha sido feito na fazenda do deputado Inocêncio de Oliveira, virou propriedade dele.
Fonte: http://revistaforum.com.br/digital/138/quando-nao-havia-corrupcao-brasil/
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